Por Luciana Lima
De acordo com muitas teorias clássicas do desenvolvimento infantil, o crescimento e a maturação da criança passam por estágios, que cada pesquisador acaba nomeando de forma diferente. Mas, todos enfatizam que esse desenvolvimento físico do ser humano é inato e filogenético, ou seja, próprio da raça humana – ocorre da mesma forma para todos.
O que é mais recente, entretanto, e que começou a ser desenhado por Montessori e alguns pesquisadores da sua época (décadas de 1930 e de 1940) é a influência do ambiente nesse processo, especialmente no desenvolvimento psíquico. A essa influência do externo na genética dá-se o nome de epigenética.
Já dizia Montessori, e a Neurociência comprova, que a criança desenvolve toda a parte cognitiva e emocional por meio de sua atuação no ambiente. Para tanto, o ambiente deve estar preparado para recebê-la. O ambiente deve ser enriquecido, ter motivos que chamem a criança à atividade e a conduzir suas próprias experiências na busca por liberdade e autonomia.
Quando esse ambiente não está preparado, “desviamos” a criança do curso normal do seu desenvolvimento. Então, as consequências podem ser desastrosas: podemos ter crianças excessivamente dependentes, letárgicas, “preguiçosas” ou com problemas sérios de comportamento.
Em uma passagem do seu livro “Mente Absorvente”, Montessori ressalta que, “se criássemos uma criança num lugar isolado, longe do contato humano, nada mais lhe dando do que uma alimentação material, seu desenvolvimento fisiológico seria normal, mas o mental ficaria seriamente comprometido”. A criança teria o que chamamos de “fome psíquica”.
O que podemos, desta maneira, deduzir sobre esses tempos de pandemia de Covid-19 e de isolamento social? Sabemos que as crianças, em sua maioria, estão sem a estimulação adequada. Além disso, o uso de telas (celular, computador, tablet, notebook etc) se intensificou nesse período por parte do público infantil, trazendo consigo todos os prejuízos ao desenvolvimento global das crianças.
Não é incomum, por exemplo, encontrarmos crianças com atrasos importantes no desenvolvimento: falhas ou ausência de fala, atraso na coordenação motora fina, além de crianças que não sabem brincar, que não interagem e que chegam até a ter medo de outras pessoas.
Sem falar que o universo delas ficou restrito, muitas vezes, às paredes do apartamento em que moram, sendo que não tiveram oportunidades de explorar o mundo para compreender como o mesmo funciona. Muitas crianças, inclusive, estão desenvolvendo “comportamentos autísticos”, como atraso na fala, dificuldade na interação social e comportamentos restritos e repetitivos como forma de autoregulação.
Recentemente, um grupo de pediatras brasileiros (Ciência pela Escola) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) publicaram dados alarmantes no que tange a temática: 5,5 milhões de brasileiros não tiveram nenhum acesso a atividades escolares no ano de 2020 por falta de recursos.
Quando se trata de crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), esse prejuízo pode ser ainda mais intenso, já que, para um desenvolvimento saudável, este público depende de terapias específicas e de estimulação precoce e intensiva.
Sabemos que são muitos os desafios desse período – devemos permanecer em isolamento e com todos os cuidados sanitários, de higiene e de saúde recomendados pelas autoridades. Por outro lado, é preciso um olhar para as nossas crianças e estimulá-las em todos os seus aspectos.
É na infância, afinal, que o psiquismo é construído. É na infância que o homem é construído. É na infância, portanto, que a sociedade do futuro é construída.
Sobre:
*Luciana Lima é e doutoranda em Neurologia Infantil, mestre em Semiótica, Tecnologia da Informação e Educação, e especialista em Psicopedagogia, em Neurologia Clínica e Intensiva, e em Neuropsicologia e Reabilitação Neuropsicológica. É autora dos livros “A Negação da Infância” e “Autismo: práticas e intervenções (organizadora)” e coautora do título “Autismo: um olhar por inteiro”._